Entrevista – Walter Carvalho

Imaginem alguém que, nos últimos anos, trabalhou em filmes como Budapeste, Chega de Saudade, Baixio das Bestas, O Céu de Suely, Crime Delicado, Cazuza – O tempo não Para, Glauber, o Filme, Labirinto do Brasil, Janela da Alma, Amores Possíveis, Central do Brasil, Lavoura Arcaica, Abril despedaçado… e muitos outros. Claro que nem todos como diretor, afinal de contas, Walter Carvalho, que conduz a direção de Raul Seixas – O Início, o fim, o meio (estreia nesta sexta-feira em circuito nacional), tem na fotografia a sua grande paixão. E talvez por isso que boa parte de sua filmografia seja preenchida por trabalhos nessa área, tendo sido ele diretor de fotografia de alguns dos mais belos trabalhos fílmicos do cinema brasileiro.

Sobre o bate papo, encontramos com ele em mais uma tarde agradável de sol em Salvador. No conforto do hotel, conversamos sobre, prioritariamente, o documentário Raul Seixas – O Início, o fim, o meio. Como o tempo era relativamente escasso, não deu para aprofundarmos muito em questões que eram de desejo nosso (seu trabalho com fotografia, seu encontro com o cineasta Béla Tarr, suas ideias sobre o uso da tecnologia 3D…). Seria necessárias algumas horas para isso. Mas em todo caso, o resultado final saiu satisfatório, com algumas revelações feitas, como por exemplo, qual seria a ideia que ele quis passar logo na sequência inicial do filme, e que ninguém até aquele instante havia percebido. Enfim, curtam agora alguns momentos desta conversa.

Cabine Cultural – Tanto você quanto Raul Seixas nasceram em cidades nordestinas e resolveram bem cedo se mudar para o Rio de Janeiro, numa fase em que o Rio era ainda mais central em um contexto sócio-econômico. Isso criou uma identificação pessoal com Raul?

Walter Carvalho – Eu fui morar no Rio de Janeiro em 1968, tinha 21 anos, o Raul já andava pelo Rio por esta época também, e o Raul se destaca no panorama Rio-São Paulo em 1972. Quando eu morava na Paraíba, ainda garoto, eu assisti o King Creole (Balada Sangrenta) algumas vezes. Eu não assistia a quantidade de vezes dele, evidentemente, mas eu vi umas três vezes. E era muito simples assistir, porque eu morava numa rua próxima da Eduardo da Silveira (rua) e no final dela tinha o Cine Santo Antônio, onde estava passando o filme. Neste mesmo instante, porque naquela época os filmes que passavam aqui em Salvador passavam em Recife, passava em João Pessoa com delay curto (uma semana, as vezes era a mesma cópia). E me apaixonei, passei a ser um admirador incondicional de uma cara chamado Elvis Presley, imitava-o, botava o cabelo assim (faz gesto imitando o Elvis), então curiosamente, com a diferença de dois anos, o Raul é mais velho que eu dois anos, se vivo fosse. Então veja, eu, na santa ingenuidade de um adolescente na Paraíba, gostava do Elvis Presley no mesmo instante que um cara em Salvador fazia a mesma coisa. Estas duas pessoas se encontram 40 anos depois através do filme. Eu lutei muito para que isso passasse para dentro do filme, mas não teve jeito. Está lá, a admiração pelo Elvis está lá, coloco o Elvis cantando quase um minuto, custou uma fortuna para o produtor, mas eu precisava que este sentimento, que eu trago na raiz, fosse levado adiante, de alguma forma. Quem é o cara que me dá o aval disso? Quem é o cara que diz assim: vai que é verdade! Um baiano chamado Olival. Quando fui pesquisar o filme aqui e entrevistei várias pessoas, para o filme, encontrei o Olival e fui conversar com ele como o amigo de infância do Glauber, que moravam no mesmo prédio. O Olival quando me disse que eles dois chegaram a ver King Creole (Balada Sangrenta), entrando no cinema às 14 horas e saindo de noite, em sessões contínuas que ele fala no filme… Ele estava me dizendo: vai, pois é verdade. E eu acreditei nisso. Então, o Olival tem uma importância na minha vida e no filme que eu não tenho como definir. Ai eu junto isso com as motos de Easy Rider (falando sobre a sequência inicial do filme), junto isso com o poema beatnik abrindo o filme, quem abre o filme dizendo o poema beatnik é um paraibano chamado Bráulio Tavares, ex-roqueiro, da mesma época e viu quem criou não sei quantas vezes… Tudo isso era para me fazer acreditar que eu estava pelo viés correto. Então quando você me pergunta quanto ao fato de eu ser paraibano e o Raul, soteropolitano, e sermos da mesma época, é curioso como isso vai dar uma liga, e vai se encontrar 40 anos depois, através do filme.

CC – A identificação é também pelo estilo musical ou pela pessoa do Raul?

WC – Eu acho que está misturado, mas tem uma coisa fundamental no que você diz, que é a irreverência. Como o Bráulio diz (no filme): pai mandava, filho obedecia, dentro de casa. Mas quando o filho botava o pé do lado de fora, como ele diz, levantava a gola e cuspia. A mãe dizia assim: baixa a gola! Ele baixava, mas quando saia, levantava… essa irreverência, o sentido libertário, o artista provocador, o artista contestatório, está todo embutido e eu acho que isso o fez ter percorrido, ter perpassado tantas gerações, quatro gerações, cinco gerações… Porque toda geração, tem um momento dela de ser contra o estabelecido e o Raul era o exemplo disso. O Raul era isso, com um agravante: a censura não percebia o que o Raul estava dizendo, caia de pau em cima do Chico Buarque, caia no pau em cima de não sei de quem, e o Raul passava, porque ninguém sabia o que era aquilo… Isto é um pouco da história do filme. Falando sobre o fato de o filme começar com Edith (primeira companheira de Raul) e terminar com Lena (última companheira de Raul), eu diria o seguinte: o filme acontece em duas cortinas (planos), elas se encolhem em si e elas se cruzam. Uma cortina é a da vida privada, e essa cortina da vida privada narra cronologicamente. Raul nasce, fica criança, vira Raulzito, Raul vai para casa, Raul vai para o Rio, Raul fica doente, Raul morre. Esta parte é contada cronologicamente. E a cortina que está paralela com essa, é a cortina da vida pública, que não possui ordem, ela é fora de ordem, não é cronológica e elas em vários momentos se cruzam, elas se tocam, elas se juntam. Mas elas estão sempre separadas, você está sempre lendo a história dele, como ele compôs tal coisa com o Paulo Coelho, ou com o Cláudio Roberto, são os dois grandes parceiros dele. Ora você está vendo isso, ora você está vendo a vida privada, o irmão que está falando…

CC – Você dirigiu Cazuza – O Tempo não Para. Nele é usada uma estrutura narrativa ficcional para contar a história da vida dele. Com Raul Seixas – O início, o fim, o meio, também sobre um ícone da cultura rock brasileira, é utilizada a estrutura tradicional de documentário. Por quê?

WC – É muito simples, o Cazuza, eu fui convidado. O Raul, eu fui convidado. Em Cazuza, eu fui convidado para dirigir um filme de ficção, baseado na vida dele. Em Raul, fui convidado para dirigir um documentário. Não escolhi. O Cazuza me escolheu, o Raul me escolheu. Quando o Jorge Peregrino me apresentou ao Denis Feijão, o produtor, e me indicou para fazer o filme, eu achava que era um filme de ficção do Raul. Por que eu achava? Eu achava que pelo fato de ter feito o Cazuza, eu ia fazer também um filme de ficção do Raul.

CC – Mas se você tivesse bancado o projeto há 3, 4 anos atrás, você teria escolhido o viés da ficção?

WC – É possível, é possível. Tanto que eu achei que era um filme de ficção. Só que não me foi proposto, a proposta era fazer um documentário. Agora, se você for olhar, os elementos do documentário são predominantes, mas você tem os galos brigando (enumera várias cenas do filme), isso tem uma vontade ficcional, que não é possível ficcionar dentro do documentário. Eu estou pensando nestes elementos aqui, mas têm outros: começar o filme com beatnik, pensa na roda de uma moto, colocar Dennis Hopper, colocar Easy Rider misturado com… Qual é a grande sacada do Raul? É juntar a imitação do Elvis Presley misturado com Luiz Gonzaga e Jackson do pandeiro. Chiclete eu misturo com banana. Ele não cantou chiclete eu misturo com banana. Ele fez. Ele fez e proporcionou na cultura musical que isso acontecesse em outras formas, em outros momentos, em vários lugares, como no Tropicalismo. Essa sacada de misturar isso vem da cabeça louca, alucinógena do Raul Seixas.

CC – E é uma mistura do global com o regional… E ela já está no documentário desde o seu início, com a poesia, com Easy Rider… Esta sequência inicial já estava na sua cabeça?

WC – Isso. O roteiro começa, o meu roteiro começa… Quando recebi o roteiro, a primeira coisa que escrevi foi que a câmera começa na roda de uma motocicleta, e vai abrindo, e ai você tem essa roda da bicicleta, é a motocicleta do Easy Rider, e que num dado momento, a motocicleta no sertão da Bahia, essa única moto se transforma num bando de motos, e exatamente isso que eu fiz, não necessariamente nesta ordem, porque eu coloquei a poesia antes, mas isso está escrito. Eu não escrevi todo o roteiro do filme, mas isto está escrito desde o início por mim. Fui para a casa e escrevi isso. E com uma ideia fixa na cabeça que até agora ninguém me confirmou, o que é minha frustração, pois ninguém até agora me disse que a ideia das motos são as moscas. Essa frustração eu vou levar. As motos são as moscas. O ruído da moto (reproduz o som) é a mosca. Em vez de filmar a mosca eu fui filmar a moto. E ai a sorte do goleiro na hora do pênalti, é que entra uma mosca na entrevista com o Paulo Coelho. E em Genebra (Suíça) não tem mosca. Então eu não posso reclamar de nada.

CC – Pra finalizar, saindo um pouco do filme, queria te perguntar como a paixão pela fotografia te influenciou na escolha pelo cinema.

WC – Eu sou fotógrafo acima de tudo. Sou um fotógrafo que dirige, mas até digo pros colegas que qualquer coisa, faço um bom preço no trabalho de fotografia… Eu gosto muito disto, gosto do desafio. Quando, por exemplo, me chamaram para dirigir Budapeste, eu pedi um tempo para ler, pedi um fim de semana para ler o livro do Chico Buarque. Quando li, vi que o tamanho da encrenca era tão grade que topei. Porque se fácil fosse você passaria no supermercado e comprava. Mas eu vi que a dificuldade de trazer Budapeste para o cinema, transformar a palavra do Chico em imagem era um negócio tão difícil que eu topei, porque ai que está o barato, o fácil você faz por telefone, entrevista fácil você faz por telefone, um plano no filme fácil (se isto existe) você faz por telefone.

* Fotos tiradas gentilmente por João Paulo Barreto.