Panorama Internacional Coisa de Cinema – Joelma

Joelma, de Edson Bastos

Não há dúvida alguma que o cinema se configura como um poderoso instrumento de denúncia social, ora levantando bandeiras de lutas das mais diversas, ora questionando o status quo vigente de uma sociedade. No entanto, questionar, refletir, se engajar politicamente num projeto, é trabalho dos mais delicados e nem todos os cineastas possuem credibilidade para abraçar uma causa de tamanha importância sem soar oportunista. Felizmente, Edson Bastos, diretor do curta-metragem Joelma, é um dos que possuem tal competência.

Dizer que seu curta-metragem Joelma é um instrumento dos mais relevantes para se entender um pouco do histórico de lutas dos transexuais no Brasil chega a ser de visível obviedade, e por conta disto não me concentrarei muito no discurso histórico-politico-social que o filme de Edson (carrega) oferece. E isso se dá porque o filme apresenta elementos dos mais atraentes, pensando numa perspectiva exclusivamente cinematográfica. Desde a abertura, passando pela bem produzida estrutura narrativa, navegando pela fotografia e chegando na cereja do bolo – atuação de Fábio Vidal – Joelma se mostra um projeto diferenciado em termos de qualidades técnicas.

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Para os que não assistiram ainda ao filme, ele retrata a vida de Joelma (Fábio Vidal). Ela, nascida nos anos 40, em Ipiaú (BA) e batizada com o nome de Joel, mudou-se ainda jovem para São Paulo em busca de uma vida longe do preconceito e determinada a realizar o sonho de fazer sua cirurgia de mudança de sexo. Trabalhava durante as noites como dançarina em boates e por 10 anos como garçonete, trabalho que a fez conhecer um mendigo português, que logo se tornou seu marido. Conseguiu enfim juntar o dinheiro e fez sua cirurgia. Com o tempo resolveu retornar para sua cidade natal, levando o marido a tiracolo. Em 1991 – no evento que marcou sua vida – um rapaz entrou em sua residência tentando estuprá-la e para se defender, ela o matou a pauladas. Foi presa; depois de um tempo, julgada e por fim absolvida.

Joelma, de Edson Bastos

A abertura do filme já traz muito do que essa sinopse mostra. Em um trabalho de montagem dos mais competentes, a narrativa oferece um mix de elementos chaves da história; a começar pelo depoimento da verdadeira Joelma, sendo sobreposta pela locução da rádio apresentando o acontecimento. Logo após a cena é cortada para uma clínica médica e num trabalho de câmera interessante apresenta-se a personagem principal da história através da tatuagem fincada nos seus pés. Na tatoo está escrito Joelma, ela está prestes a realizar a tão sonhada cirurgia.

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A partir daí Edson Bastos passa a recriar os ambientes vividos por Joelma: sua saída da cidade, seu trabalho como dançarina em boate, sua volta a Ipiaú, o assassinato, a prisão, absolvição… Não dá para afirmar que a história foi descrita por completo, mas o curta-metragem certamente forneceu tudo que do ponto de vista narrativo era necessário. E o ponto forte do roteiro foi se distanciar de uma estrutura linear, de mostrar os episódios cronologicamente. Isso talvez agregasse mais força ao projeto enquanto elemento social, mas perder-se-ia muito do ponto de vista cinematográfico. Edson preferiu trabalhar mais os neurônios e montar homogeneamente sua história, oscilando a todo o momento entre os diversos passados de Joelma. Acertada escolha.

Joelma, de Edson Bastos

Escolha esta que só perde para aquela que definiu o nome do protagonista da história. Não há dúvidas que Fábio Vidal transpassou para as telas todos os sentimentos possíveis: angústia, dor, nervosismo, aflição, amor e prazer. Sua Joelma possui uma atmosfera multifacetada, reflexo de suas habilidades (também múltiplas) como ator. Ele se desapega por completo de qualquer vaidade que se poderia ter e num dos trabalhos mais intensos de sua carreira, proporciona ao espectador uma experiência bem peculiar. A sequência em que Joelma se doa para o marido é de uma força imagética grandiosa.

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Há ainda outros destaques, tais como a bela fotografia, que diferencia as diversas fases da história; alguns truques narrativos empregados satisfatoriamente, como a elipse que é mostrada no inicio, quando Joelma se despede da mãe rumo à cidade grande. Também a trilha sonora, que agrega valor ao resultado final (a cena da Ave Maria é muito bem feita).

Joelma, de Edson Bastos

Reescrevendo o que já foi dito, Joelma é um instrumento dos mais relevantes para se entender um pouco do histórico de lutas dos transexuais no Brasil. Mas não só isso: é também uma história muito bem contada, com uma protagonista interessante, obstáculos para se vencer e um desfecho muito satisfatório. É drama, é romance, é biográfico, e é acima de tudo cinema. Bom cinema, por sinal.